OS PRAZERES DA CARNE VERMELHA
OS PRAZERES DA CARNE VERMELHA
MITOS E VERDADES
A espécie humana sempre comeu carne. Nas cavernas, nossos antepassados davam preferência a ela, como concluíram os estudos de suas arcadas dentárias. É provável que o homem só se conformasse com outros alimentos quando a caça rareava. Guiado pelo instinto do paladar, corria atrás da carne por seu alto valor calórico: um grama de gordura produz 9 calorias, um grama de açúcar ou proteína, 4 calorias.
Por milhões de anos, mesmo quando o homem buscou na agricultura as calorias necessárias para manter a família, a preferência pela carne resistiu. E assim permanece. Não é fácil subverter ordens estabelecidas em milhões de anos. A genética é mãe castradora.
A desnutrição sempre foi endêmica. Em todas as civilizações conhecidas, comida abundante e variada era privilégio. Há apenas um século e meio, a batata da Irlanda foi dizimada por uma praga, e um milhão de pessoas morreram de fome. O número de mortos dá ideia da monotonia da dieta irlandesa da época.
Na Europa, a fome resistiu à passagem da Segunda Guerra; era preciso ser rico para comer carne todo dia. Mesmo hoje, fartura de alimentos é privilégio de um ou outro país. O passado de fome crônica moldou o consumo de energia da espécie humana. A pressão seletiva favoreceu a sobrevivência dos que comiam o máximo que aguentavam, toda vez que encontravam comida. Entre eles, levaram vantagem reprodutiva os que tinham capacidade de armazenar, sob a forma de gordura, as calorias ingeridas em excesso. Ser dono de uma reserva adiposa ao redor do corpo era decisivo quando chegavam as vacas magras. Os magrinhos ficavam inferiorizados na hora de enfrentar jejuns prolongados. Num mundo de predadores, o caçador enfraquecido vira caça no dia seguinte.
A seleção natural só tem olhos para o indivíduo. A ela não interessa o futuro de qualquer espécie. Haja vista quantos milhões delas acompanharam os dinossauros nas extinções em massa. Não existe grandiosidade nos desígnios da evolução. Ela segue curso inexorável, mero resultado da soma aritmética de pequenas conquistas individuais que conferem microvantagens na hora da reprodução.
A evolução não moveu um dedo para impedir que o homem moderno, filho de caçadores e coletores que se matavam por comida, inventasse a poltrona e o disque-pizza. Como resultado dessa ruptura com a tradição de escassez permanente de alimentos vieram a obesidade, diabetes, hipertensão e os infartos do miocárdio.
Maior incidência de infartos
Depois da Segunda Guerra, nos países industrializados, foi descrita uma epidemia de ataques cardíacos em homens de 50 anos e mulheres na menopausa. Essas mortes criaram um clamor público: o que estaríamos fazendo de errado com nossas vidas para merecer tal punição?
Bode expiatório
Habituados a interpretar fenômenos biológicos com lógica religiosa, os homens associaram o prazer ao pecado. Sexo e paladar, os maiores prazeres conhecidos, são os principais suspeitos de qualquer doença.
Como no caso dos infartos não parecia razoável culpar o sexo, praticado à larga pelo homem desde tempos ancestrais, a suspeita caiu sobre a alimentação.
Estávamos nos anos 60, era da contracultura, da valorização da vida campestre em oposição à sociedade industrial. Era moda acreditar na alimentação vegetariana produzida sem fertilizantes químicos como condição de saúde. A suspeita, então, caiu em cheio sobre a carne vermelha, o alimento preferido pela maioria das pessoas. Afinal, gostamos de peixe, mas precisa ser bem feito; e de frango, dependendo do tempero; mas carne vermelha, de qualquer jeito é bom.
Não é preciso ciência no preparo. Basta pôr na brasa e jogar sal grosso. O cheiro de peixe na panela faz perder o apetite, o de frango é neutro, mas o de carne junta saliva na boca. É reflexo ancestral.
Descoberta surpreendente
Ao redor de 1785, Edward Jenner, o descobridor da vacina contra a varíola, ao autopsiar um paciente morto após dores no peito seguidas por um ataque cardíaco fulminante, notou algo: “Depois de examinar as partes mais importantes sem encontrar nada que pudesse ser responsável pela morte súbita ou pelos sintomas que a precederam, estava fazendo um corte na base do coração quando o bisturi bateu em algo tão duro e granuloso que fez um dente na lâmina. Olhei para o teto, que estava velho e se desprendia, achando que um pedaço de gesso tivesse caído de lá. Mas, examinando melhor, pude ver a causa verdadeira: as coronárias tinham se transformado em canais ósseos”.
Estava descoberta a causa das dores no peito (anginas) e dos infartos do miocárdio: as placas endurecidas que obstruem as coronárias, as artérias que irrigam o músculo cardíaco.
Colesterol e Aterosclerose
Em 1904, o biólogo F. Marchand usou o termo aterosclerose para definir a natureza das placas obstrutivas. Em 1910, o bioquímico A. Windaus demonstrou que essas lesões continham 6 vezes mais colesterol livre do que a parede da artéria normal, e 20 vezes mais colesterol esterificado.
Em 1912, um médico da armada russa – Nikolai Anichkov – induziu, pela primeira vez, aterosclerose em coelhos alimentando-os com gema de ovo e colesterol puro. Depois de algumas semanas de dieta, a aorta de 90% dos animais estudados começou a exibir as mesmas placas acinzentadas das coronárias das vítimas de infarto. Como 10% dos coelhos nessa dieta nunca desenvolviam placas, Anichkov concluiu acertadamente que o colesterol não era o único responsável pelo aparecimento delas. Em cachorros e ratos, ele não repetiu resultados semelhantes. Esses animais não desenvolviam placas nas artérias por mais colesterol que ingerissem.
Não seria sensato pensar que o coelho, animal vegetariano, desenvolvesse aterosclerose por não estar evolutivamente habituado a lidar com colesterol na dieta? E que ratos e cachorros, animais que comem de tudo, têm longa convivência com o colesterol e, portanto, mais resistência à formação de placas? Detalhe tão relevante passou despercebido para Anichkov e para a maioria dos cientistas que vieram depois dele.
Bom e mau colesterol
Os trabalhos de Anichkov, publicados em russo, ficaram esquecidos até os anos 50 quando foi descoberta a ultracentrífuga, aparelho que gira em velocidades vertiginosas, a ponto de precipitar em camadas, por ordem de densidade, as gorduras e proteínas colocadas em seu interior. Com a ultracentrífuga, o bioquímico americano John Gofman publicou, na revista Science, um estudo mostrando que a gordura do sangue dos coelhos alimentados com colesterol era composta por duas frações principais: uma que ia para o fundo do tubo de ensaio centrifugado, e outra, de menor densidade, que ficava na superfície. Estavam descobertos o HDL e o LDL, respectivamente.
Gofman percebeu, ainda, que essa fração LDL encontrava-se elevada nos coelhos que desenvolviam placa, mas nos 10% de animais que não a formavam, apesar da dieta rica em colesterol, a maior parte da gordura era transportada sob a forma de HDL. Havia, então, um colesterol “bom” (o HDL) e outro “ruim” ( o LDL).
Anos depois, o mesmo grupo usou a centrífuga mais potente da época para separar as frações de colesterol contidas em dois grupos de homens. No primeiro, foram estudados indivíduos que haviam tido e se recuperado de ataques cardíacos. No segundo, indivíduos saudáveis. Os autores verificaram que os níveis de LDL eram bem mais altos nos homens “cardíacos” e os de HDL, nos normais. Exatamente como nos coelhos, concluíram.
A descoberta do LDL como agente da aterosclerose aparentemente explicava por que algumas pessoas têm ataque cardíaco apesar de apresentar níveis normais de colesterol total. Entretanto, como o custo das ultracentrífugas para separar frações de colesterol eram proibitivos, pouca atenção foi dada ao HDL e ao LDL no sangue humano, por mais de uma década. Nos anos 60, quando surgiram métodos químicos para dosar frações de colesterol sem necessidade de ultracentrifugação, a determinação dos níveis de HDL e LDL virou rotina.
Para completar o cenário no qual eclodiria a guerra ao colesterol, prestes a ser decretada no mundo industrializado, é fundamental citar outros dois trabalhos realizados nos Estados Unidos.
Em 1952, o grupo do especialista em nutrição, L. Kinsey, demonstrou que dietas compostas de vegetais e baixos teores de gordura animal reduziam o colesterol na maioria dos seres humanos. Em seguida, um grupo chefiado por E. Ahrens, da Universidade Rockfeller, foi mais longe: as gorduras vegetais reduziam o colesterol graças à insaturação de suas moléculas. Os animais aumentavam seus valores por terem moléculas saturadas ( com mais átomos de hidrogênio).
Guerra à gordura animal
Os ingredientes básicos estavam reunidos para começar uma das maiores confusões intelectuais sobre a saúde do homem do século XX. Se existia um colesterol “bom” e outro “mau”, as gorduras deveriam ser divididas em “boas” (insaturadas, derivadas principalmente dos vegetais e dos peixes) ou “más” ( saturadas, como as da carne vermelha e dos derivados de leite).
Esses trabalhos tiveram enorme impacto. Como a liderança mundial da ciência americana já era inconteste nessa época, a crença nas conclusões citadas se disseminou. A carne vermelha, os laticínios e a gema de ovo foram execrados. Eram os assassinos do homem moderno! A indústria dos alimentos de baixos teores de gordura animal floresceu.
Conclusões precipitadas
Quando analisamos as informações científicas que serviram de base para aconselhar mudanças tão drásticas no estilo de alimentação, no entanto, ficamos absolutamente surpresos: elas não permitem tirar as conclusões que foram apregoadas!
Embora 50% dos infartos do miocárdio ocorram em pessoas com colesterol normal, não há dúvida de que pessoas com níveis mais altos de LDL no sangue correm risco maior de doença coronariana. Está demonstrado, também, que a redução do consumo de gordura animal faz cair os níveis de LDL. O que não está comprovado é que ingerir menos gordura animal diminua a probabilidade de ter ataque cardíaco ou de viver mais tempo.
Em outras palavras: até hoje, nenhum estudo epidemiológico para avaliar as conseqüências de uma dieta rica ou escassa em gordura animal na longevidade humana ou na prevalência de infarto do miocárdio conseguiu demonstrar relação de causa e efeito.
Por exemplo, o célebre Nurse’s Health Study acompanhou, por 20 anos, 50 mil enfermeiras do país que respondiam questionários periódicos sobre hábitos alimentares e problemas de saúde. O estudo, conduzido pela Escola de Saúde Pública de Harvard, envolve o maior número de participantes acompanhados até hoje em qualquer trabalho sobre o tema, por tão longo período de tempo e com tanto rigor.
A quantidade de gordura presente nas refeições diárias das 50 mil escolhidas foi tabulada com as enfermidades apresentadas por elas no período. Os resultados não demonstraram relação entre o número de calorias ingerido sob a forma de gordura animal e a incidência de doença cardíaca. Esses dados obtidos pelo grupo de Harvard foram confirmados em dois outros estudos: o Health Professionals Follow-up Study e o Nurses’ Health Study II. Os três estudos juntos envolveram 300 mil pessoas seguidas por mais de dez anos. As conclusões são as mesmas:
1) Dietas ricas em gorduras monoinsaturadas (como o óleo de oliva) reduzem o risco de doença cardíaca;
2) Dietas ricas em gorduras saturadas (como a carne vermelha) aumentam muito pouco o risco de doença coronariana, quando comparadas com dietas ricas em carboidratos, como pão, macarrão e doces. Outra surpresa dos cientistas foi a constatação de que as gorduras presentes na margarina são bem menos saudáveis do que as contidas na manteiga.
De hipótese a dogma
Os três estudos citados custaram ao National Institute of Health (NIH) que os financiou, US$100 milhões. Apesar do gasto, nenhuma agência de saúde do governo deu publicidade aos resultados finais, muito menos sugeriu que a orientação geral de cortar a gordura animal devesse ser revista.
A respeito dessa atitude oficial, Walter Willet, em entrevista à Science, revista oficial da Academia Americana de Ciências, disse: “É escandaloso”. E questionou a política das agências de saúde americanas: “Agora, eles dizem que há necessidade de provas de alto valor científico para derrubar as recomendações vigentes de cortar gordura na dieta, o que é irônico, porque nunca tiveram provas de valor para estabelecê-las”.
Num dos artigos mais completos sobre o tema, na Science de 30 de março de 2001, o autor, Gary Taubes, um dos editores da revista, afirma: “A convicção de que gordura na dieta mata, e sua evolução de hipótese a dogma, é um exemplo no qual políticos, burocratas, a mídia e o público desempenharam o mesmo papel que os cientistas e a ciência.”
Taubes analisou a incidência de doença cardíaca nos Estados Unidos nos últimos 30 anos. Desde o início da década de 70, quando foram divulgadas as recomendações oficiais para reduzir a ingestão de gordura animal no país, a mortalidade por ataques cardíacos de fato caiu. Como as calorias derivadas da gordura animal representavam 40% do total de calorias ingeridas nos anos 1980 e hoje correspondem a 34%, as autoridades da área de saúde insistem em que a redução das mortes deva ser atribuída aos novos hábitos alimentares americanos.
Uma análise mais detalhada desses números, no entanto, foi publicada na revista de maior circulação mundial entre os clínicos, The New England Journal of Medicine, em 1988. Nela, os autores atribuem a queda dos índices de mortalidade por doenças cardíacas à melhora dos cuidados médicos no tratamento, não à redução do número de casos da doença.
As estatísticas da American Heart Association dão suporte à observação anterior: entre 1979 e 1996, o número de procedimentos empregados no tratamento de doenças cardíacas aumentou de 1,2 para 5,4 milhões de intervenções/ano. Difícil atribuir à diminuição de gordura animal a responsabilidade pela queda dos índices de mortalidade, quando pontes de safena se tornaram rotineiras.
Uma das idéias a consolar as autoridades americanas que estabeleceram as normas dietéticas atuais foi a de que um grama de gordura produz 9 calorias, enquanto a mesma quantidade de carboidrato ou proteína produz 4. Então, mesmo que a recomendação de reduzir gordura animal falhasse na diminuição da incidência de doença cardíaca, ainda estaria fazendo um bem, pensaram elas: menos carne vermelha, menos calorias ingeridas, menor o número de casos de obesidade, hipertensão e diabetes.
Foram ingênuas. Não levaram em conta a natureza humana. A retirada de um alimento altamente calórico da dieta não assegura necessariamente redução do número total de calorias ingeridas, porque ele pode ser substituído por outros menos calóricos, mas ingeridos em quantidades maiores (carboidratos, principalmente). A quantidade de energia diária que o corpo exige para funcionar é decidida através de mecanismos inconscientes e cobrada prosaicamente de cada um de nós na forma de fome. Dominar o apetite é tarefa inglória.
No já citado estudo, entre as 50 mil enfermeiras, metade foi exaustivamente orientada a consumir uma dieta na qual as calorias derivadas de gordura não ultrapassassem 20% do total ingerido diariamente. Depois de três anos nesse regime espartano, as mulheres de fato haviam perdido peso: um quilo, em média.
Nos últimos 20 anos, enquanto o consumo de gordura animal caiu 6% (de 40% para 34%) na população americana, a prevalência de obesidade aumentou de 14% para mais de 22%. Ao lado dela, cresceram os casos de diabetes e hipertensão arterial. Esses dados conduzem a estas suspeitas:
1) Será que dietas mais pobres em gordura não levariam à obesidade?
2) A diminuição da atividade física provocada pelo aumento da massa corpórea não aumentaria o risco de doença cardíaca?
3) Não estaria no aumento do número de casos de diabetes e hipertensão ligados à obesidade parte da explicação para os ataques cardíacos do homem moderno?
A questão está longe de ser resolvida. Dizer que uma dieta pobre em gordura deve ser adotada porque se não prolongar a vida, mal não fará, não tem fundamento científico. E pode nem ser verdade.
O metabolismo do colesterol
Como tantos médicos, passei anos aconselhando meus pacientes a reduzirem os níveis de colesterol pela dieta alimentar. A experiência foi frustrante. Descontados os casos esporádicos, só com grande esforço pessoas muito disciplinadas conseguiram baixar as taxas de 10% a 20%, no máximo. Enquanto isso, outros se esbaldam e o colesterol não sobe.
Vi um senhor que comia uma dúzia de ovos por dia havia mais de trinta anos e tinha colesterol total de 160 (pelos padrões atuais, recomenda-se que sejam mantidos valores abaixo de 200). Encontrei uma mulher de 40 anos com colesterol de 280. Quando lhe disse que precisava reduzir gordura animal, respondeu-me que era vegetariana havia doze anos.
Isso quer dizer que o metabolismo do colesterol pouco respeita as virtudes da pessoa. Nossa capacidade de interferir com a concentração de gordura no sangue é limitada pelos fatores genéticos. Tanto que mesmo a propalada influência do colesterol na incidência de doença coronariana é simplesmente discreta.
Na referida matéria da Science, Gary Taubes relaciona seis estudos publicados na década de 1980, que ilustram as observações anteriores. Quatro deles, realizados nas cidades de Honolulu, Chicago, Framingham e em Porto Rico, compararam o tipo de dieta com a incidência de doença coronariana. Nenhum demonstrou que dietas de baixo conteúdo de gordura animal reduzissem o número de ataques cardíacos ou aumentassem a longevidade.
Um quinto estudo, Multiple Risk Factor Intervention Trial (MRFIT), custou US$115 milhões. Os participantes foram aconselhados a adotar simultaneamente várias medidas para reduzir o risco de doença cardíaca: deixar de fumar, controlar hipertensão com medicamentos e cortar gordura da dieta. A análise dos dados finais mostrou que a redução de gordura não fez qualquer diferença na incidência de doença coronariana, mesmo entre hipertensos e fumantes. Ao contrário: entre os que adotaram dieta com menos gordura, a mortalidade geral (todas as causas reunidas) foi mais elevada.
Ação de medicamentos específicos
O sexto estudo começou em 1984 e foi conduzido na Universidade da Califórnia a um custo de US$140 milhões – o LRC Coronary Primary Prevention Trial. Nele, foram selecionados apenas homens de meia-idade com colesterol elevado (valores mais altos do que os encontrados em 95% da população geral). Os participantes foram divididos em dois grupos: o primeiro recebeu um medicamento para diminuir o colesterol, a colestiramina; o segundo, comprimido de talco (placebo). Os resultados foram os seguintes:
1) A colestiramina causou redução significante dos níveis de colesterol;
2) O medicamento reduziu o número de ataques cardíacos de 8,6% no grupo-placebo para 7,0% nos tratados;
3) A administração da droga fez cair a mortalidade por infarto do miocárdio: de 2,0% no grupo-placebo para 1,6% no grupo tratado.
Por incrível que pareça, a demonstração de que reduzir os níveis de colesterol por uma intervenção química como essa (que provocou 0,4% de diminuição na mortalidade) foi extrapolada para o teor de gordura na dieta. Se abaixar o colesterol à custa de colestiramina fez cair a incidência de doença coronariana, reduzir seus níveis com dietas pobres em gordura terá o mesmo efeito, disse o coordenador administrativo do estudo.
A repercussão nos Estados Unidos foi imediata. Veio na forma de campanhas públicas e numa matéria de capa da revista Time intitulada: “Perdão, é verdade. O colesterol mata”. A conclusão, resultante de meias- verdades científicas, ganhou a imprensa.
Com o advento das estatinas, drogas capazes de reduzir dramaticamente os níveis de colesterol, estudos confirmaram que o uso desses medicamentos diminui discretamente a incidência de doença coronariana e prolonga a vida daqueles que têm risco alto de infarto do miocárdio.
Qualquer pessoa com um mínimo de discernimento científico, entretanto, sabe que a eficácia de uma abordagem medicamentosa sobre qualquer parâmetro bioquímico do sangue jamais pode ser extrapolada para intervenções dietéticas sem a realização de estudos comparativos que envolvam milhares de participantes acompanhados criteriosamente durante muitos anos, para que o número de eventos finais adquira significância estatística.
O NIH calcula que um estudo com tais características custaria pelo menos US$1 bilhão, quantia que nenhum país quer investir.
Dados epidemiológicos
Muitas das ideias, que deram origem às normas para cortar gordura animal na dieta, nasceram da epidemiologia comparada. Desde os anos 1950, sabemos que finlandeses e escoceses, por exemplo, que ingerem dietas ricas em leite e carne vermelha, são vítimas de altos índices de ataques cardíacos. A dieta tradicional japonesa, rica em peixe, teria efeito protetor e explicaria a baixa incidência de ataques cardíacos no Japão.
Tal lógica, no entanto, sempre encontrou sérias contradições:
1) Os franceses, por exemplo, consomem muita manteiga, creme de leite, queijos e carne, mas apresentam baixos índices de doença coronariana. Esse fenômeno, o “paradoxo francês”, tem sido atribuído ao consumo de vinho tinto, fatores genéticos, tamanho das porções da cozinha francesa, etc.;
2) Mais contundente do que o paradoxo francês, ainda, é o caso dos povos do sul da Europa, que vivem no Mediterrâneo. Com a melhora das condições econômicas após da Segunda Guerra, essas populações fizeram como outras na mesma situação: aumentaram o consumo de carne, leite e queijos. O que aconteceu com a mortalidade por doença cardíaca? Diminuiu! Caiu proporcionalmente ao crescimento do consumo de gordura. O mesmo está acontecendo com a ocidentalização atual da dieta no Japão, ao contrário do que se supôs;
3) Num trabalho realizado na cidade francesa de Lyon, 605 pessoas que sobreviveram a ataque cardíaco prévio foram tratadas com medicamentos para reduzir os níveis de colesterol e divididas em dois grupos de acordo com a dieta adotada. O primeiro foi aconselhado a manter uma dieta semelhante à recomendada aos americanos, com redução drástica da quantidade de gordura animal. O segundo, a adotar uma dieta do tipo mediterrâneo: mais cereais, pão, legumes e frutas, peixe, sem exagero de carne vermelha. Nas duas dietas, o conteúdo de gordura animal ingerido diariamente variou de forma significativa: os que adotaram o padrão mediterrâneo consumiram em média quantidades maiores. Apesar disso, os níveis de colesterol total, HDL e LDL, permaneceram idênticos. Quatro anos mais tarde, os resultados indicavam a ocorrência de 44 ataques cardíacos na dieta americanizada, contra 14 na dieta mediterrânea.
Classicamente, no caso dos povos do Mediterrâneo, o benefício tem sido atribuído ao uso do óleo de oliva. Essa conclusão foi aceita sem questionamento pelos médicos e divulgada para o grande público como verdade científica. Tanto que a maioria das dietas para reduzir colesterol prescreve uma ou duas colheres de azeite de oliva diárias. A influência do óleo de oliva na prevenção de infarto, porém, está longe de ser esclarecida. Voltemos ao artigo da insuspeita Science. Dimitrios Trichopoulos, epidemiologista de Harvard, sugere que o paradoxo dos povos mediterrâneos talvez esteja além do óleo de oliva e pergunta: para que esses povos usam o azeite? Para temperar saladas e cozinhar legumes. Como essas populações ingerem cerca de meio quilo de vegetais por dia, em média, quem garante que não sejam eles os responsáveis pela proteção?
Pelo mesmo raciocínio poderíamos perguntar se finlandeses e escoceses, povos que vivem em lugares gelados, inóspitos para a produção de vegetais, não teriam tantos infartos pela falta destes na dieta, e não pelo excesso de gordura.
Gordura X Carboidratos
Gary Taubes, no site do Departamento de Agricultura americano, na seção Nutrient Database for Standard Reference, encontrou a composição de uma chuleta (T-bone) rodeada por uma camada generosa de meio centímetro de gordura. De acordo com os dados, depois de grelhada a chuleta é composta por porções iguais de gordura e proteína: metade de cada. O autor caracteriza assim a composição da parte gordurosa da chuleta: “51% dela é gordura monoinsaturada, da qual virtualmente tudo é o saudável ácido oléico – o mesmo do óleo de oliva; 45% é gordura saturada, pouco saudável, mas um terço dela é ácido esteárico, componente no mínimo inofensivo. Os restantes 4% do total são gordura poliinsaturada, que também melhora os níveis de colesterol”.
A análise da composição deixa claro que uma chuleta não chega a ser uma arma tão mortal quanto nos fizeram crer. Taubes faz as contas: “Bem mais do que metade – e talvez até 70% – do conteúdo gorduroso contribuirá para melhorar os níveis de colesterol. Os 30% restantes provocarão aumento do LDL (colesterol “mau”), mas também aumentarão o “bom” colesterol (HDL).
“Se em lugar da chuleta a pessoa ingerisse pão, macarrão ou batata”, continua Taubes, “seus níveis de colesterol ficariam piores, embora nenhuma autoridade de nutrição tenha coragem de dizer isso publicamente.
Neste momento, a relação gordura versus carboidrato na dieta ocupa posição central no debate entre pesquisadores. A célebre pirâmide nutricional que as autoridades de vários países – entre eles o Brasil – adotaram, com a base larga para indicar os vegetais que devem ser ingeridos em abundância, a parte intermediária referente aos carboidratos que podem ser ingeridos com liberalidade e o topo da pirâmide que corresponde à gordura animal a ser consumida de forma muito restrita, tem sido questionada. Alguma coisa precisamos comer. Se não for carne, o que será?
A lógica é cristalina: dificilmente substituímos o bife do jantar por tomates ou cenouras. A carne costuma ser trocada por carboidratos. Dietas com baixo teor de gordura animal quase sempre são fartas em pão, macarrão, tortas e doces.
Por razões mal conhecidas, temos mais dificuldade para limitar a ingestão de carboidratos do que a de gordura. Não é fácil encontrar alguém capaz de comer duas picanhas no almoço, mas pão, macarrão e doce ingerimos em quantidades muito maiores. E, pior, digerimos esses alimentos bem mais rapidamente.
Na digestão dos carboidratos, o pâncreas é solicitado a produzir insulina para quebrá-los em açúcares mais simples que vão ser estocados nos depósitos naturais do organismo. Enquanto os açúcares contidos em frutas e vegetais aparecem na circulação sangüínea em concentrações que aumentam lentamente à medida que vão sendo absorvidos pelo tubo digestivo, alimentos como pão, macarrão, arroz e doces dão origem a picos na circulação imediatamente depois da ingestão.
Tais picos súbitos de carboidratos obrigam o pâncreas a produzir quantidades excessivas de insulina para quebrá-los e estocá-los rapidamente. Uma vez armazenados, a energia associada a eles não está mais disponível, e o corpo sente fome outra vez.
Além de aumentar o risco de diabetes pela estimulação exagerada do pâncreas, dietas com alto conteúdo de carboidratos provocam aumento de triglicérides e de LDL (o “mau” colesterol), e redução dos níveis de HDL. Esta tríade de eventos bioquímicos é conhecida como resistência à insulina (ou síndrome X) e está intimamente ligada ao aumento do risco de doença coronariana.
Tiro pela culatra
Assim, fica claro que as recomendações atuais para evitar gordura animal nas refeições são, no mínimo, desprovidas de fundamento científico. Mais grave, podem induzir a parcela da população com acesso ilimitado aos alimentos a ingerir quantidades maiores de carboidratos, que podem ser responsáveis pelo aparecimento de diabetes nos geneticamente predispostos, aumento de triglicérides e de LDL, redução do HDL e, agora sim, aumento do risco de morrer de ataque cardíaco.
O infarto do miocárdio é exemplo clássico de patologia multifatorial. Sua incidência depende principalmente da herança genética e de vários fatores de risco: sexo, idade, tabagismo, hipertensão, obesidade, diabetes, vida sedentária, níveis de colesterol e triglicérides, além do estresse da vida urbana. É ingenuidade imaginar que a simples eliminação ou redução de um único componente da dieta interferira no risco de sofrer de uma enfermidade assim complexa.
São tantos os mal-entendidos nessa área, que mesmo a existência atual dessa epidemia de infartos pode ser questionada. Quem garante que esse acontecimento é recente, se nos séculos que nos precederam as pessoas morriam de doenças infecciosas muito antes de atingir 50 anos? E as poucas que viviam mais, que tipo de assistência médica recebiam? Existe algum estudo que permita comparação da mortalidade por doença cardíaca entre o século passado e o atual?
Implicações diretas e indiretas
A questão do colesterol divide os cientistas atuais e envolve interesses econômicos. Basta pensar na quantidade de alimentos com baixos teores de gordura oferecidos. Ou no custo do atendimento médico relacionado com o controle policialesco do colesterol. Ou, ainda, no interesse econômico gerado pelas estatinas, drogas utilizadas na clínica para reduzir os níveis de colesterol, que rendem US$ 4 bilhões por ano em vendas apenas no mercado americano.
As mais rígidas intervenções dietéticas não costumam provocar queda superior a 10% nos níveis de LDL – enquanto as estatinas reduzem 30%, mesmo com dietas permissivas. Sendo assim, por que não considerarmos desprezível o impacto da dieta em pessoas com níveis de LDL normais ou pouco acima da normalidade?
Para os que apresentam LDL elevado não seria sensato medicá-los, permitir uma dieta mais humana e recomendar que larguem de fumar, percam peso, controlem a pressão, aumentem a atividade física e reduzam o estresse diário?
A redução de gordura na dieta, além de estimular o consumo de carboidratos com provável piora do perfil lipídico, pode interferir com mecanismos bioquímicos muito importantes e mal conhecidos. Por exemplo, pessoas com colesterol total muito baixo (abaixo de 160) apresentam risco maior de hemorragia cerebral. E, mais grave, quanto mais abaixo desse nível estiver o colesterol maior a chance de morrer por outras causas.
O citado E. Ahrens, autor de trabalhos fundamentais a respeito do metabolismo do colesterol, diz que comer menos gordura pode provocar alterações profundas no corpo, muitas das quais nocivas. O cérebro, por exemplo, é 70% gordura, que serve basicamente para abrigar os neurônios.
O próprio colesterol e outras gorduras são componentes essenciais das membranas das células. Mudanças bruscas na proporção de gorduras saturadas e insaturadas na dieta podem modificar a composição dessas membranas. Essas alterações interferem com os mecanismos de transporte de todas as substâncias que entram ou saem da célula: fatores de crescimento, hormônios, bactérias, vírus e agentes cancerígenos. Como consequência, da composição gordurosa da membrana celular dependem processos como nutrição, resposta imunológica, produção de hormônios, condução de estímulos através dos neurônios, envelhecimento e apoptose, a morte celular programada.
Recomendações necessárias
Como lidar com informações tão contraditórias? À luz dos conhecimentos atuais, é mais sensato pensar o seguinte:
1) Aqueles com LDL-colesterol muito elevado provavelmente se beneficiem do corte no consumo de gordura animal. As recomendações oficiais são de que, neles, o consumo de calorias derivadas da gordura não ultrapasse 10% do total de calorias ingeridas. Não esquecer, no entanto, que uma interferência dietética dessa radicalidade costuma abaixar apenas 10% os níveis de LDL, o que pode não ser suficiente para colocar a pessoa fora de risco. Se alguém com 250 de LDL faz uma dieta vegetariana, e esse número cai para 225, o risco persiste apesar da queda. Nesse tipo de situação parece mais sensato usar medicamentos que reduzem as taxas de LDL em 30% e permitir certa liberalidade dietética.
2) Para a grande maioria das pessoas portadoras de níveis normais ou pouco aumentados de LDL, é fundamental deixar claro que o impacto dos níveis de colesterol no risco de doença cardíaca é pequeno. O efeito da dieta nos níveis de colesterol também. Não há demonstração científica de que se essas pessoas cortarem ou acrescentarem gordura animal na dieta, terão maior ou menor risco de infarto, ou de morrer mais cedo.
3) Embora não haja respostas definitivas, vale a pena apostar numa dieta rica em vegetais, que talvez ajude a prevenir ataques cardíacos. Se não o fizerem, pelo menos são alimentos ricos em micronutrientes essenciais, ajudam o funcionamento do aparelho digestivo e têm conteúdo calórico mais baixo.
É importante lembrar que reduzir o total de calorias ingeridas parece ser, em toda a escala animal, a única estratégia capaz de retardar o envelhecimento e aumentar a longevidade. O corpo exige um número mínimo de calorias diárias, não interessa se retiradas da cenoura ou do bacon.
Uma dieta sem excesso de calorias ajuda a prevenir diabetes, hipertensão, obesidade, resistência à insulina, reumatismo, impotência sexual, ataque cardíaco, derrame cerebral, câncer e outras doenças degenerativas. Não está bom?
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